É possível viver de RPG como GM? Mollie Russell é especialista em D&D no site Wargamer, com formação em Escrita Criativa e Literatura Inglesa e conversou com mestres profissionais para entender como é jogar Dungeons & Dragons e ser pago para isso.
“Faça algo que você ame e nunca trabalhará um dia na vida.” Um clichê conhecido, mas que em 2025, com a economia nada amigável, muitos questionariam. Ainda assim, transformar um hobby em profissão é o sonho de muita gente criativa — artistas, dançarinos, escritores e, cada vez mais, jogadores de Dungeons & Dragons.
O conceito de “GM profissional”, alguém que recebe para mestrar D&D, é algo em construção, flexível e em constante evolução. Para entender bem, precisamos olhar para onde isso começou e em que formas pode se manifestar.
Um pouco da história do GM profissional
Historicamente, fãs de RPG de mesa já ganhavam dinheiro com design de jogos. Além dos livros e caixas de D&D, revistas como The Strategic Review e Dragon Magazine lá fora e Dragão Brasil (lendas lendárias sdds), Tormenta, Dragon Slayer e Heróis eram espaços para publicar monstros, aventuras, notícias e análises do universo RPG.
Nos anos 2000, surgiram as primeiras séries de “actual play” na internet, inspiradas no e-sport e streaming, mas também moldadas por fóruns de RPG online e relatos de wargames. Já por aqui, a gente ainda engatinhava nesse mundo, mas já rolavam uns podcasts amadores e gravações caseiras que mostravam a paixão pelo RPG.
Penny Arcade foi um dos primeiros grandes nomes do “actual play” em inglês, mas Critical Role, que começou em 2015, é muito mais famoso. Hoje, quando pensamos em GM profissional, Matt Mercer e Brennan são nomes que facilmente vem à mente. No Brasil, não temos um nome tão massivo quanto o Mercer, mas canais como o “Casa Velha RPG” e o “Crônicas da Meia-Noite” vêm construindo uma base de fãs fiel com suas narrativas envolventes.
Séries como Critical Role popularizaram D&D e apresentaram a profissão de GM para muitos. Rowan Hall, designer da Darrington Press (ligada à Critical Role), conta que sua carreira começou porque GMs profissionais a convidaram para jogar e atuar em “actual plays”. A internet foi crucial para conectar pessoas e criar oportunidades pagas de mestragem. A internet foi crucial para conectar pessoas e criar oportunidades pagas de mestragem. É o mesmo que acontece hoje no Brasil, com a galera se encontrando em grupos de Discord, Facebook e Reddit para organizar mesas e aventuras.
Harry McEntire, GM do canal Natural Six, lembra que tudo começou para ele ouvindo o podcast Not Another D&D Podcast. Ele destaca que o “actual play” cria um espaço acessível para novos GMs, profissionais ou não.
Ele ressalta: “Existem padrões impossíveis impostos por GMs profissionais, mas o mais importante que Matt Mercer fez foi ser acolhedor, responsivo e generoso à mesa.”
A pandemia, a internet e o D&D mainstream
Um ano após Critical Role, Netflix lançou Stranger Things, série que mostra crianças enfrentando monstros com a paixão por D&D. Em 2017, a Wizards of the Coast registrou entre 12 e 15 milhões de jogadores — o maior número da história. No Brasil, a série também impulsionou o RPG, com cada vez mais gente querendo aprender a jogar.
RPGs de mesa estavam na mídia e no gosto popular. A demanda por jogos e shows de D&D só cresceu.
Em 2020, a pandemia impulsionou ainda mais esse crescimento. James Gregory, DM do Roll Britannia, diz que a pandemia foi o início da sua carreira profissional. Com tempo livre, ele começou a gravar jogos para podcast. Por aqui, a pandemia também fez muita gente redescobrir o RPG como forma de socializar e se divertir online.
Pesquisas mostraram aumento de 85% no interesse por D&D em 2020, e a receita da Wizards subiu 46%. A internet e o isolamento deram aos DMs profissionais acesso a um público global crescente.
Coincidentemente, 2020 foi o ano de fundação do StartPlayingGames, maior site para encontrar jogadores e grupos de RPG, com mais de 20 mil usuários conectados. No Brasil, temos plataformas como a Torre do Dragão e o HubRPG, que facilitam o encontro entre jogadores e mestres.
Spenser Starke, designer de jogos, atribui a esse site o crescimento do DMing como negócio, facilitando experiências pagas além de convenções e grupos no Reddit.
Com as mesas migrando para o online, DMs puderam trabalhar de casa para jogadores no mundo todo, ampliando o alcance das campanhas.
Alec Englund, usuário do StartPlayingGames, viu na mestragem uma oportunidade de renda extra, comparando seu serviço ao trabalho de um artista vendendo suas pinturas.
Jesse Rozsa, DM do Laughing Lich Corporation no YouTube, também começou a cobrar em 2020, para equilibrar gastos com assinaturas e livros.
Por que pagar por um GM profissional?
Apesar de controvérsias, especialmente sobre jogos online pagos, a prática segue firme.
A explicação mais clara é a lei da oferta e demanda: D&D e cultura nerd estão na moda, e mais jogadores e DMs significam mais procura por serviços pagos.
Englund destaca a “cultura do hustle”, onde talentos são valorizados e as pessoas estão dispostas a pagar por eles, como se contratassem um DJ para uma festa.
Rozsa conta que grupos pagam para não precisarem estudar regras ou para que todos possam jogar, sem alguém ficar de fora como DM.
Além disso, conveniência e consistência são atrativos: campanhas desandam por falta de organização ou compromisso, e pagar um DM significa garantir alguém dedicado, preparado e presente.
Um exemplo prático é o RPG Taverns, em Londres, que oferece jogos pagos para iniciantes ou quem não tem tempo para grupo regular, com sistema “drop in, drop out” e dezenas de sessões semanais. No Brasil, ainda não temos um espaço físico tão estruturado, mas iniciativas como a “Mestres da Lorota” oferecem sessões online pagas com narradores experientes.
No universo do actual play, o produto é a experiência gratuita
Shows como Natural Six e Roll Britannia são gratuitos no YouTube e Spotify. O dinheiro vem de anúncios e plataformas como Patreon, e o apoio é mais afetivo que comercial.
Natural Six financiou sua campanha via Kickstarter, levantando mais de 50 mil dólares para uma produção de alta qualidade com nomes conhecidos da indústria.
Hoje, com 30 episódios e 35 mil inscritos, a receita vem de merchandising, anúncios e Patreon. “Nossa primeira venda de merch esgotou em meia hora”, conta McEntire.
É possível viver disso?
Com a demanda em alta, parece haver mais trabalho para GMs profissionais, mas ganhar o suficiente para viver disso ainda é raro.
McEntire é o único do elenco de Natural Six que recebe pagamento, e mesmo assim, só por escrever roteiros.
Gregory diz que o dinheiro do Roll Britannia é reinvestido em equipamentos, viagens e até festas de fim de ano do time.
Englund diz que sua renda era só um extra, e para viver só disso precisaria de 4 a 8 campanhas semanais — mais que um emprego em tempo integral.
Desafios e conselhos para GMs profissionais
Burnout é um problema comum, citado por todos. Criar para viver pode ser exaustivo.
Starke diz que às vezes precisa voltar a jogar por diversão para recuperar a energia.
Jivan concorda: “É muito gratificante, mas também cansativo, porque você está sempre performando e oferecendo um serviço.”
Englund alerta para não se sobrecarregar, pois já teve que abandonar jogos por estresse.
A questão do valor justo é delicada, com preços variando muito e críticas sobre ser caro pagar por algo que amigos fazem de graça.
Em eventos como Gen Con, o pagamento é cerca de 8 dólares por pessoa para 4 horas de jogo; na plataforma StartPlayingGames, Englund cobrava 10 dólares por pessoa para 3 horas. No Facebook, é possível encontrar anúncios de campanhas, sobretudo as oficiais de D&D, por R$ 10,00 por sessão a R$ 100,00 por mês.
Dicas para quem quer começar
Quem vem do actual play recomenda sonhar grande e persistir, mesmo quando parecer que ninguém está ouvindo.
Já os que fazem jogos pagos online sugerem começar pequeno, com uma campanha de cada vez, organizar bem o material, usar calendários e notas, e não largar o emprego fixo no começo.
Aprender a usar ferramentas virtuais de mesa também é essencial para oferecer uma experiência fluida e divertida.
Dungeons & Dragons tem 50 anos, mas só recentemente virou mainstream. O crescimento rápido, aliado à tecnologia, abriu novas formas de transformar paixão em profissão.
Ainda não dá para chamar de carreira definitiva, nem mesmo para o Matt Mercer, que complementa com trabalho de dublagem.
Mas as histórias mostram que a mudança está acontecendo — devagar, mas vem chegando.
E você? É mestre profissional? Compartilha aqui sua experiência como GM profissional.
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